Magia Negra? Magia Negra é o quê?

Magia Negra é o quê? Magia do mal? Magia do capeta, tinhoso, capiroto, cramunhão? Acostumamo-nos com palavras e um certo valor atribuído a elas sem questionamento.

Magia Negra é a Magia do Negro, e tudo que é negro já foi sinônimo de coisa ruim, do mal, negativo, degradante, perverso, atrasado, etc., por mais que alguma coisa tenha mudado, ainda é pouco.

Parece sutil e é; no entanto, é nessa “sutileza” que mora o racismo, que se esconde, que passa despercebido para quem não é negra ou negro. É urgente uma correção dessa linguagem de significados racistas.

Se palavras com significado degradante insistem em permanecer em nosso vocabulário, aí está o racismo e ninguém assume ou se dá conta. Muitas vezes, ao alertar, ouvimos: está chato!

Se está chato para quem apenas ouve sobre isso, imagina como está chato para quem sofre há gerações e séculos após ser tratado como coisa. E ainda hoje é “coisificado” em meio a palavras distorcidas com seus significados pejorativos de raça e etnias.

Precisamos ressignificar palavras construídas a partir da realidade colonial patriarcal racista e escravagista. Não podemos mais aceitar que Magia Negra é sinônimo de Magia Negativa deve ser o termo correto.

Magia Negra deve ser a Magia da Negra, o que há de mais forte em sua magia é o poder da palavra, a importância do verbo, da entonação e significado com valor atribuído. Sua palavra e sua magia se aplicam em rezas, fórmulas mágicas, encantos e feitiços.

Na cultura mágica religiosa de todas as diversas tradições negras africanas, a palavra é reconhecida como veículo de axé (poder de realização), portadora de encanto e encantamentos, ferramenta de feitiço e cura.

O entendimento desse poder é o suficiente observar a importância da palavra.

Esse saber é uma Magia Negra, Magia de Encanto, Fascínio e Beleza. Saber quais palavras devem ser evitadas é o mínimo para leigos que têm um vago olhar na superfície do mistério que envolve a palavra.

Ao pronunciar algo, você é aquilo; saber parecido se encontra na cultura hindu, na qual a repetição das palavras induz ao transe místico por meio das técnicas do mantra. O tom, timbre, frequência, intenção, interpretação, sentido do som e sua construção são matéria de milênios de estudo nessas duas culturas.

A cultura ocidental banalizou o poder da palavra, a igreja sacralizou o latim, e demonizou os demais idiomas como profanos; algo semelhante ocorreu com o hebraico para os judeus, o sânscrito para os hindus e o yorubá para nigerianos.

Toda palavra e todo idioma têm seu poder, atribuído pelo respeito que um mago, feiticeiro ou sacerdote carrega em cada uma de suas notas, assim como as construções musicais dessas tradições.

Não banalizar a palavra é não banalizar seu sentido; a palavra é usada para determinar o que somos e quem são os outros. Por isso, vamos nos atentar ao uso ordinário empregado por certas palavras que persistem em alimentar e manter uma relação de poder e subjugação entre mentalidade colonial, patriarcado branco e o negro, ao reduzi-lo a um inconsciente coletivo, enquanto toda uma população consciente ou inconscientemente reproduz valores racistas, que permeiam o mundo contemporâneo.

Wittgenstein diz que “as fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo”. Um feiticeiro diz que a palavra determina o que você é e reduz o outro ao que você pronuncia para ele. Esse é o poder do feitiço, muitas vezes para empoderar a palavra você reza para a divindade e usa uma semente sagrada na boca ao pronunciar.

E assim que, ao chamar uma mulher de mulata, você a reduz a uma mula, a um animal híbrido, a uma mestiça, mistura de duas raças, uma superior com uma inferior.

Ao considerar que denegrir é um ato de diminuir algo, você afirma que quanto mais negro menos bonito, menos importante, menos confiável, menor em todos os sentidos.

Chamar um ser humano de macaco é sempre com intenção de ofender, agredir, injuriar, diminuir, reduzir alguém a uma coisa, um bicho, um símio.

Pior ainda quando assume a forma de “racismo recreativo”, pior quando ironiza, quando se esconde por meio de uma pretensa liberdade de expressão que seja do humorista profissional à piada infame de seu amigo ou parente.

Personagens como Mussum, Tião Macalé e Vera Verão fizeram parte de um tempo em que o humor de programas como Os Trapalhões e A Praça é Nossa reforçava o racismo e o sexismo.

Em minha infância, em escola pública, era certo chegar a segunda-feira e ver meninos e meninas negros serem hostilizados, comparados aos personagens citados, os estudantes repetindo as “piadas” de mau gosto e
agredindo em função do gênero, do cabelo, da cor da pele. Crianças repetindo o que os adultos faziam como entretenimento de massa, em um canal de concessão pública em horário nobre.

Lembro-me ainda de uma fala que me marcou para sempre, em torno de 1995, aos 21 anos. Eu, branco, na casa de um amigo branco, com outros amigos brancos e sua mãe branca, sentados à mesa sendo servidos por uma senhora negra. A mãe do amigo tentava dizer o quanto tinha apreço por aquela trabalhadora do lar, desdobrando-se em elogios vazios e frios, citando anos de trabalho em sua casa dedicados à sua família, dizendo inclusive que era “como se fosse da família”.

A senhora visivelmente cansada dessa falácia de décadas, servindo à mesa não tinha nenhum olhar de empatia com a “patroa”, nenhum sorriso e nenhuma palavra. Eu já estava envolvido com a Umbanda e aprendendo a interpretar palavras, atitudes corporais e olhares.

Ali entendi meu desconforto uma negra inicial, perdi o chão, mas infelizmente fiquei sem ação e sem palavras, só queria sair dali. Hoje não me calo mais, no entanto demorei a aprender meu lugar de fala.

O racismo é um sistema perverso que envolve toda uma nação, e tem por motivo manter um grupo racial (étnico) em posição inferior e subordinado ao outro. De maneira consciente ou inconsciente, isso é mantido por meio de conceitos, sentimentos, pensamentos, palavras e ações que determinam comportamento e hábito racista.

É preciso descolonizar as mentes brancas, negras, amarelas e vermeIhas. A quem interessa essa cultura de opressão?

A quem interessa manter relações de opressão? A quem interessa manter o negro subalterno? Quem se incomoda em ouvir sobre isso? Quem pede para não falar mais sobre isso?

Se incomoda ouvir sobre feminismo e racismo, imagine o quanto incomoda sentir na pele e em suas entranhas a discriminação e o preconceito constantes, estruturados no sistema social como um vírus, um câncer que se espalha, enquanto muitos dizem: não precisa tratar, pare de cuidar e quem sabe se resolve sozinho.

Essa terra foi roubada de seu dono, seu povo foi dizimado em um holocausto, seus bens naturais foram saqueados, outro povo foi escravizado e agredido de todas as formas, arrastado para cá por força de morte, extermínio e estupro de suas vidas e corpos.

Tudo isso realizado por coroas imperiais e a igreja. Hoje se reconhece o crime? Onde está a indenização? Prescreveu? Três ou quatro gerações? E quando se fala em demarcação de terras indígenas ou sistema de cotas para negros em universidades parece um absurdo?

Aprenda essa Magia Negra, Magia da Palavra, Magia da Cultura, Magia de Conscientização!!! Magia de descolonização.

Empodere-se de cultura, história e acima de tudo se empodere da arte de descolonizar nossas mentes desse universo racista, machista, imperial, sexista, branqueador e, infelizmente, judaico-cristão patriarcal.

Texto
Extraído do livro Pombagira – A Deusa – Mulher Igual Você – Editora Madras
Foto
EuSemFronteiras
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