Umbanda: Religião Brasileira, Afrobrasileira ou Afro-ameríndio-brasileira?

Umbanda brasileira ou afrobrasileira? Ou ainda, ameríndia?

Minha querida irmã, amiga, mulher do axé, mulher do samba, jornalista, sacerdotisa, Mãe de Santo do Terreiro Templo da Liberdade Tupinambá, dirigente espiritual do CECURE, doutoranda em Ciências da Religião pela PUC, Claudia Alexandre, me trouxe um questionamento que faz parte da sua pesquisa sobre a Umbanda e matriz africana, para o livro Não Corte Minhas Raízes (em produção) e também, está no cerne de algumas de nossas construções e desconstruções enquanto Umbanda! Segue abaixo:

“Alê, estou fazendo um texto sobre a supressão e uso de termos que demarcam as contribuições de sujeitos/sujeitas negro-africanas da história do Brasil e das tradições de matrizes africanas, e tenho uma questão pra você:

Por que seu livro sobre a “História da Umbanda” diz na capa que ela é “uma religião brasileira”? E não afro-ameríndia Brasileira ou até Afrobrasileira (conforme o IBGE). Porque vc recorreu à supressão do “afro”? Aguardo. Obrigada.”

Resposta:

Uma mesma Umbanda observada por ângulos diferentes pode se mostrar outra Umbanda, mesmo academicamente falando. É muito fácil defender ideias opostas com a mesma convicção. Hoje eu sinto, percebo, entendo, defino e fundamento a Umbanda de uma forma diferente da época em que escrevi este livro.

Por esta razão vou dizer como fundamentei a pesquisa e o conceito em 2008, ao iniciar o estudo e escrita deste livro até sua publicação em 2010 e como fundamento hoje, em 2020.

Capa História da Umbanda

Umbanda é uma religião brasileira, formada de uma pluralidade de culturas das diversas etnias negras africanas, ameríndias e euro-judaico-espírita-católico-cristã. É possível encontrá-la também diversa como “Umbanda Afro”, “Umbanda Espírita Cristã” ou “Umbanda Ameríndia”, dependendo da maior ou menor influência de cada uma das culturas diversas que lhe dão origem, além de outras variações destas mesmas como “Umbanda Esotérica”.

Na ocasião em que escrevi o livro acreditava eu que não deveria dar mais atenção ou ênfase de uma de suas origens (africana, ameríndia ou européia) em detrimento das outras.

Na época acreditei na importância de afirmar uma identidade plural – tanto quanto plural é a identidade do Brasil em si – reafirmada por sentimentos de nacionalismo na construção de uma identidade da Umbanda.

Estes sentimentos e visão são ressaltados na obra de alguns autores umbandistas, e boa parte de seus praticantes, incluindo eu, na época que escrevi o livro “História da Umbanda – uma religião brasileira”

Não bastava ter uma opinião, de que umbanda é brasileira; por isso, fui buscar uma fundamentação acadêmica com o resumo abaixo:

Dos primeiros pesquisadores até Roger Bastide em “As Religiões Africanas no Brasil” (1960), há interpretação de que a Umbanda é afrobrasileira. Bastide entende que está diante de uma religião ainda em construção, cita os conflitos de uma “luta racial” entre Espiritismo e Macumba, para ele “difícil de seguir historicamente os primeiros passos assim como descrevê-los”.

No entanto, seu orientando ou discípulo Renato Ortiz*, em “Morte Branca do Feiticeiro Negro” (1975) afirma que:

“Não nos encontramos mais na presença de um sincretismo afrobrasileira, mas diante de uma síntese brasileira…”

Ortiz, afirma ainda que:

“Neste sentido divergimos da análise feita por Roger Bastide em seu livro aqui citado, onde ele considera a Umbanda como uma religião negra, resultante da integração do homem de cor na sociedade brasileira. É necessário porém assinalar que o pensamento de Roger Bastide havia consideravelmente evoluído nestes últimos anos. Já em 1972 ele insiste sobre o caráter nacional da Umbanda… Entretanto, depois de sua ultima viagem ao Brasil, seu julgamento torna-se mais claro; opondo Umbanda, macumba e Candomblé, ele dirá: “o Candomblé e a Macumba são considerados e se consideram como religiões africanas. Já o Espiritismo de Umbanda se considera uma religião nacional do Brasil. A grande maioria dos chefes das Tendas são mulatos ou brancos de classe média…”

O caráter de síntese e de brasilidade da Umbanda é desta forma confirmado e reforçado.

Estas ideias de Renato Ortiz reforçam a tendência de apresentar Umbanda apenas como religião brasileira. No entanto fecho o conceito, na época com a teoria de uma “matriz religiosa brasileira” como segue abaixo:

O doutor em comunicação e cultura Eduardo Refkalefsky* (2007) afirma que Umbanda é religião de “matriz religiosa brasileira”, termo fundamentado pelo sociólogo José Bittencourt Filho* (2003), e que existe uma matriz religiosa de identidade brasileira, formada por traços culturais diversos, dos povos que dão formação ao Brasil.

Por todo este estudo não posso ser leviano em apenas refutar um conceito, “Umbanda Brasileira”, sem demonstrar que também existe fundamentação para tal.

Não é difícil afirmar origens ou matrizes diversas para a Umbanda como, por exemplo, matriz euro-cristã enquanto culto espírita, que tem seu mito fundador no dia 15 de Novembro de 1908, por um jovem típico brasileiro de classe média chamado Zélio de Moraes, em torno do qual se une um grupo de intelectuais afirmando-se “espíritas umbandistas”, na busca por legitimação desta religião brasileira, seguindo o modelo europeu de Espiritismo já devidamente legitimado e adequado ao mundo moderno, eurocêntrico, branco, colonial e cientificista.

Hoje, quando falamos em origens, raízes, matrizes que dão formação à Umbanda brasileira, entendo que a matriz primeira é a africana, presente e destacada na Macumba, principalmente de origem negro Bantu Angola Kongo.

Esta matriz surge em primeiro lugar e absorve as culturas ameríndia e euro-espírita-cristã, ainda enquanto Macumba, presente no século XIX, para então surgir a religião Umbanda, devidamente reconhecida e legitimada no século XX.

Por isso, hoje eu diria que a Umbanda é uma Religião Afrobrasileira, não apenas por reconhecer uma origem ou matriz primeira africana Bantu, mas também por equidade e justiça ao apagamento sistemático desta mesma cultura, negra africana, por parte de toda a sociedade brasileira racista, colonial, eurocêntrica, em especial os apagamentos internos promovidos pelos próprios umbandistas, boa parte da sua formação intelectual a partir da década de 1930, negando sua matriz afro e até mesmo combatendo a Macumba como forma de religiosidade Bantu que lhe dá boa parte de sua formação.

Apenas em 1951 surgiria um autor negro, Tatá Tancredo, reividincando o devido lugar negro e africano da Umbanda como vertente Umbanda Omolocô.

Facilmente lhe afirmaria afro-ameríndia também por reconhecer a presença de povos e culturas originárias que atravessam a Umbanda, seja pelos caboclos indígenas ou por interações, as mesmas que dão origem ao culto de Jurema e Catimbó no Nordeste; e mesmo por origens nativas ou nativas-católicas mais antigas como pajelança ou o culto da Santidade, fundado por um indígena batizado com o nome de Antônio no século XVI, presente na região do recôncavo baiano.

Assim, reconheço que a negação da Umbanda enquanto religião afro-ameríndia ou afrobrasileira, a negação de suas origens africana ou ameríndia, primeira, com uma posterior assimilação de conceitos espírita-cristão-católico, durante seu processo de construção, é a reprodução de racismo religioso, que está presente em seu processo de legitimação por meio dos próprios umbandistas, em seu discurso, registrado na larga literatura dos primeiros intelectuais umbandistas, boa parte deles homens brancos egressos do Espiritismo de Allan Kardec.

Entendo os desafios de toda uma branquitude umbandista, que não se vê descendente de africanos, que desconhece a língua e a cultura africana, e que se inferioriza diante da própria ignorância acerca de um saber milenar, riquíssimo, plural, encantador e gigante como a cultura negra africana em suas diversas etnias, bem como a cultura ameríndia.

Mais do que definir se é afrobrasileira, afro-ameríndia ou Umbanda brasileira, estamos diante da indefinição e insegurança na construção da identidade destes que praticam uma religião à qual não compreendem em sua totalidade ou que é mesmo incompreensível em seu todo, ficando cada um agarrado em um de seus fragmentos.

Precisamos de discursos reparadores e olhares mais que inclusivos, olhares de equidade. O racismo nos atravessa o tempo todo, assim nos atravessa na Umbanda.

Ângela Davis ficou conhecida também por afirmar:

“Em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser anti-racista”.

Ao reconhecer como o racismo atravessou a construção da Umbanda, ao incluir o discurso de Tatá Tancredo na construção da religião, constatando que somos no mínimo o encontro da Macumba com o Espiritismo, ou mesmo um desdobramento da própria Macumba, onde ela engoliu o Espiritismo, é uma questão de consciência e não apenas uma questão acadêmica ou de vertente reconhecer a Umbanda como religião afrobrasileira ou afro-ameríndia-brasileira.


Bibliografia:
REFKALEFSKY, Eduardo e LIMA, Cyntia R. J. Posicionamento e Marketing
Religioso Iurdiano: Uma Liturgia Semi-importada da Umbanda; in MELO, JoséMarques de; GOBI, Maria Cristina; ENDO, Ana Claudia Braun (Org.). Mídia e Religião na Sociedade do Espetáculo. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista, 2007.

BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Ed. Livraria Pioneira, 1971

ORTIZ, Renato. A Morte Branca do Feiticeiro Negro. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988

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