Música sacra afro-brasileira e os evangélicos

A música sacra afro-brasileira, na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, tem enfrentado resistência, sobretudo de alunos evangélicos.

Por exemplo, Andrea Adour, professora de Canto da Escola de Música da UFRJ, propôs o estudo das “Toadas de Xangô” de Guerra Peixe para sua turma. Então, um aluno, evangélico, reagiu:

“E se eu receber alguma entidade?”

Cordialmente, Andrea explicou que a universidade não é um espaço de rito, de prática religiosa. Explicou também que ali aquela música era vista como arte, de uma perspectiva laica, de conhecimento.

Dessa forma o aluno entende e aceita cantar a peça — e outras de caráter sacro de matriz afro-brasileira.

Assim, conflitos do tipo têm sido comuns ali.

Professores e alunos da Escola de Música contam que o estudo de música sacra afro-brasileira hoje enfrenta esse desafio.

Eventualmente há alunos que se manifestam e marcam resistência na própria sala de aula. Outros simplesmente trancam matrícula em determinadas disciplinas para evitar se deparar com um repertório que seja contra suas convicções religiosas.

A reportagem do jornal O Globo os procurou mas nenhum desses estudantes quis ser entrevistado.

“É comum alunos de formação religiosa mais fechada questionarem, se recusarem a cantar, quando apresentamos alguma obra que usa termos de origem afro, referindo-se a entidades como Oxalá, Oxum”, conta Valéria Matos, professora de Regência Coral da UFRJ.

Porém, há também o outro lado.

O estudante Paulo Maria, 19 anos, negro e evangélico, identifica racismo na reação à música sacra afro-brasileira.

“Quando canto peças que se referem a religiões afro-brasileiras, canto como artista.
Mas essa situação faz parte da História brasileira.
Pois o negro foi feito escravo, a cultura afro foi jogada de lado pelos europeus”, diz o aluno, que é negro.

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Foto: Guito Moreto/Agência O Globo – Reprodução

“Tivemos polêmica com “Cânticos de Obaluayê”, de Francisco Mignone, “Abalogun”, de Waldemar Henrique, “Xangô”, de Villa- Lobos.
Bem como até com músicas que não falam de Orixás, mas que têm palavras como “macumba”, como é o caso de “Estrela é lua nova”, de Villa-Lobos”, lista Andrea, que coordena o Africanias, grupo de pesquisa de repertório brasileiro, com ênfase nas influências negra e indígena.

Assim, a questão vem se afirmando de maneira tão clara que o II Congresso Internacional de Música Sacra — organizado pela UFRJ e realizado em julho de 2019, com

Valéria como coordenadora geral — teve como tema exatamente “A universidade e as religiões em diálogo”.

Disse: “Diante da situação do Brasil hoje, quando a tolerância religiosa passa por momentos críticos, faz parte do papel da universidade educar para que essa tolerância se torne mais efetiva. O congresso teve esse objetivo. Trouxemos de vários lugares do Brasil professores que fazem pesquisas que mostram a importância dada à academia à música sacra em todas as direções: católica, protestantes, afro-brasileira, judaica, indígena…”, explica Valéria, que dirige o Sacravox, projeto de extensão dedicado à música sacra brasileira.

O fenômeno de resistência a certo repertório de música sacra afro-brasileira é recente.

“Assim, o professor tem que entender que o canto lida com o universo sensível do indivíduo e pode tocar em seu ambiente pessoal, religioso.
Mas precisa ter o esclarecimento para explicar que a prática artística e cultural não é a prática religiosa”, opina Valéria.

E Andrea prossegue:

“Não se pode permitir que uma cultura destrua outra, inclusive a cultura neopetencostal deve ser preservada. Não se trata de propagar determinada religião. Inclusive, sou católica, mas quando um aluno opta por um saber apenas, ele se fecha ao conhecimento.”

Da mesma forma, Robson Lemos, estudante de mestrado da Escola de Música, também evangélico, vê a questão de forma semelhante.
Ele relata que já presenciaram não só alunos de canto se negarem a executar música sacra afro-brasileira, mas também uma pianista da escola.
Lemos conta que já ouviu argumentações que mostram “o desejo de subjugar outras culturas”.

“Vi certa vez um aluno se recusar a cantar. Então a professora indagou por que ele admitia músicas que mencionavam outras religiões, outras mitologias, mas não admitia os Orixás. Ele respondeu que só canta repertório de religiões ‘que eles já eliminaram’.

Por fim, há ainda também um longo caminho contra intolerância, do dia a dia até a música sacra afro-brasileira.

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