Umbanda antes de 1908: o que já sabemos sobre isso?
A Umbanda antes de 1908 já existia? Este é um debate que vem crescendo nos últimos anos e que merece atenção.
O que é possível afirmar é que a Umbanda antes de 1908, ou seja, antes de ser conhecida por este nome, já apresentava indícios do que nos acostumamos a ver nos terreiros nos últimos 113 anos. Por exemplo, antes do surgimento da Umbanda como religião já existia o culto aos Orixás, no Candomblé, e também a manifestação de Pretos Velhos, Caboclos, Exus, Pombagiras e Crianças registradas em terreiros de Candomblé, Macumba Carioca e até em alguns Centros Espíritas.
Assim, novas pesquisas sugerem que a Umbanda antes de 1908 possivelmente já existia pelas mãos de Luzia Pinto, Juca Rosa e Pai Gavião entre outros. Pai Gavião, por exemplo, surge em reportagem do jornal Correio Paulistano em 1854, por ocasião de uma insurreição de escravos ocorrida naquele ano na cidade de São Roque, interior de São Paulo.
Segundo a matéria, Pai Gavião era um espírito que incorporava em José Cabinda, então líder negro de escravos rebelados. Ainda segundo a reportagem de época, José Cabinda realizava rituais que reuniam um grande número de escravos e negros libertos repleto de músicas cantadas em dialetos incompreensíveis acompanhados de instrumentos simples de percussão e chocalhos.
Já na década de 1870, no Rio de Janeiro, outro homem negro, Juca Rosa, foi descrito como “feiticeiro” e também como “negro inteligente e retinto” no livro História da Polícia do Rio de Janeiro (1944). Supostamente, fazia rituais mágico-religiosos voltados para a cura que atraiam até mesmo senhoras brancas da alta sociedade carioca onde incorporava espíritos curadores e onde a música e a dança também se faziam presentes.
Há também o caso emblemático de Luzia Pinta, vinda da África Central para o Brasil na primeira metade do século XVIII, ou seja, um século antes dos exemplos anteriores. Acusada de feitiçaria em 1739, foi enviada a Portugal, julgada e condenada pelo Santo Ofício. Seu crime: realizar rituais com o uso de ervas, plantas, fumos e riscos no chão, tudo relacionado a um processo mágico-religioso de conexão com os antepassados.
Luzia Pinta era uma espécie de sacerdotisa de um culto que pode se apontado como Calundu Angola, termo generalizado para expressar um conjunto de práticas que mesclavam elementos religiosos indígenas, negros e até europeus. Sua atuação se estendeu entre as décadas de 1720 até 1739 em Minas Gerais.
Sua trajetória se inicia em Angola, onde nasceu, para logo depois aportar na Bahia como uma criança escrava onde permaneceu até os 20 anos de idade. Aos 30, comprou sua alforria e mudou-se para Sabará (MG) onde iniciou e praticou por quase duas décadas um culto muito assemelhado ao que conhecemos hoje como Umbanda.
O curioso é que só é possível afirmar isso por conta de sua prisão e processo legal ocorrido em Portugal, o que gerou uma documentação que inclui os autos e depoimentos de testemunhas que detalharam como funcionavam suas atividades religiosas.
E é justamente por conta deste material que sabe-se que as cerimônias realizadas por Luzia Pinta eram abertas ao público e recebiam tanto negros quanto brancos. Música e dança estavam sempre presentes até que Luzia entrasse em transe mediúnico, quando alguns assistentes a vestiam com roupas e adereços relacionados à entidade incorporada.
Dependendo da cerimônia, Luzia incorporava uma ou outra (ou mais de uma) entidade para promover a cura de doenças, purificar todos os que ali estavam presentes e até fazer adivinhações. Consta também que algumas cerimônias eram dedicadas a Santo Antonio e São Gonçalo, demonstrando ali a presença de um sincretismo religioso com o catolicismo.
Ou seja: pouco menos de 200 anos antes do “nascimento” oficial da Umbanda já existia um culto muito parecido com o que praticamos hoje em pleno século XXI.
Então a história toda estaria sendo contada de maneira errada?
Umbanda antes de 1908: conhecer para entender Zélio
Entenda-se desde já que o objetivo aqui não é demonizar o homem branco de classe média que, ainda jovem, “fundou uma religião do nada”, tanto como supostamente brotou de sua mente o termo “Umbanda”. Em 1908, Zélio Fernandino de Morais, aos 17 anos, queria ingressar na Marinha quando começou a ter sintomas diversos e até sinais de paralisia. Exames médicos à épca não encontravam indícios de anormalidades, até que um dia Zélio acordou e disse à família: “Amanhã estarei curado”.
No dia seguinte, de fato, levantou e andou como se nada tivesse acontecido. Em meio ao espanto geral, a família o levou até a sede da Federação Espírita do Rio de Janeiro, situada em Niterói, onde Zélio morava. Ao chegar lá, o médium dirigente pediu que ele sentasse à mesa, pois teria importante papel na sessão. Em determinado momento dos trabalhos se afastou e buscou uma rosa, que colocou no centro da mesa. Os presentes estranharam aquilo, estranharam ainda mais quando começaram a se manifestar vários espíritos que se identificaram como Caboclos indígenas ou escravos africanos.
O médium dirigente do Centro pediu que esses espíritos se retirassem, pois supostamente seriam “atrasados” do ponto de vista espiritual. O espírito que havia levado Zélio a buscar a flor questionou o médium dirigente, perguntando por que ele considerava que aqueles espíritos não eram evoluídos apenas por terem sido de cor e classe social diferentes na última reencarnação. Sem sucesso, o espírito então respondeu:
“Se julgam atrasados estes espíritos dos pretos e dos índios, devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho para dar início a um culto em que esses pretos e índios poderão dar sua mensagem e, assim, cumprir a missão espiritual que a eles foi confiada. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E, se querem saber o meu nome, que seja este: Caboclo das sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim.”
No dia seguinte, 16 de novembro de 1908, na residência de Zélio, estavam reunidos membros da Federação Espírita que, curiosos, vieram comprovar a veracidade do que tinha sido dito, parentes e amigos de Zélio, além de vários desconhecidos que permaneciam do lado de fora da casa. Às 20 horas se manifestou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, declarando aberto um novo culto cujas bases são o Evangelho de Cristo e a caridade.
O Caboclo respondeu a várias perguntas feitas pelos representantes da Federação Espírita e até por padres que se encontravam no local, algumas formuladas em idiomas não conhecidos por Zélio. Depois começou a pedir que entrassem na casa os doentes que se encontravam no lado de fora para serem curados. A esse trabalho deu o nome Umbanda. Antes do final da sessão manifestou-se um Preto Velho, Pai Antonio, que ensinou o ponto cantado: “Chegou, chegou, chegou com Deus. Chegou, chegou, o Caboclo das Sete Encruzilhadas”.
No dia seguinte, na casa de Zélio, foi fundada a primeira casa de Umbanda, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. Dez anos mais tarde, por orientação do Caboclo das Sete Encruzilhadas, Zélio articulou e fundou mais sete tendas de Umbanda. Iniciou-se aí a disseminação da Umbanda pelo Brasil.
Este relato traz símbolos essenciais à Umbanda: o respeito à natureza, aos evangelhos de Cristo, e a postura de tratar todos os seres humanos da mesma forma, sem distinção. E este é o real sentido da frase comumente repetida “Umbanda é caridade”.
Dar um pouco de si em favor do outro, sem olhar sua origem, sexo, cor ou classe social é um dos maiores ensinamentos. E o próprio Zélio dizia que não é necessário se converter para ir a um Centro de Umbanda e receber auxílio, pois a Umbanda trata também todas as demais religiões com igual importância e validade.
Outro importante aspecto, a incorporação de espíritos que foram, em alguma de suas encarnações escravos (Pretos e Pretas velhas), indígenas (Caboclos), crianças (Erês), pessoas ligadas a vivência “da rua” e/ou a profissões pouco valorizadas (Malandros, Ciganos, Boiadeiros, Marinheiros) e migrantes (Baianos) começavam a valorizar e dar visibilidade a segmentos essenciais na formação da identidade do povo brasileiro, antes em segundo plano.
No livro O Guardião das Sete Pedras – O Chamado, psicografado por Matheus Castro, dois trechos chamam a atenção:
O livro – nos formatos e-book e impresso – merece ser lido por muitos aspectos, mas aqui destacamos apenas o anúncio de uma entidade para um movimento espiritual muito próximo ao povo brasileiro, sem datas nem nomes. Apenas o anúncio de seu surgimento.
“Há muito tempo os Divinos Tronos regentes deste planeta tem estruturado uma ação para interferirmos na destruição de vidas de inocentes e de mais uma queda vibracional desta amada terra. E com a autorização dos Divinos Tronos e em nome dos Sagrados Orixás fundaremos uma nova religião que começará no Brasil e, com o tempo, se expandirá pelo mundo para que assim possamos auxiliar nossos outros irmãos de outras partes terrenas a manter a paz e o equilíbrio do planeta.“
“Ela existirá nem que seja dentro de um só coração. Nunca deixará de existir e quando ela cair é daí que a sua força surgirá, pois em seu declínio é que os fortes se sobressairão e a manterão de pé.”
Que Zélio de Moraes não engendrou “do nada” uma religião chamada Umbanda antes de 1908, parece ser evidente. Mas inegável que seu papel é de suma importância para o estabelecimento da religião como tal. Luzia Pinta, Pai Gavião, Juca Rosa e outros que ainda surgirão em pesquisas futuras mostrarão sua importância como precursores de práticas religiosas complexas a que todos somos fiadores.
Em um momento em que as questões de identidade de gênero e raça mostram força capaz de resgatar a real importância destes e de outros segmentos subjugados em nossa história, é essencial darmos visibilidade a estes pioneiros e pioneira.
Que a Umbanda antes de 1908 continue a ser destacada, pesquisada e presente em nossa história, sem apagamentos ou preconceitos. Somos todos um. Somos todos Umbanda.